terça-feira, dezembro 13, 2005

Uns são mais livres do que outros


Agora dou mais valor aos meus tempos de criança, em que passava os dias a nadar, ora no alto-mar ou na Baía, numa espécie de lago que enformava a casa dos meus pais. Jogava à bola, andava de carrinhos de madeira com rolamentos, construía papagaios em papel de seda, que alteava nos terrenos salgados dos mangais. Estragava sapatos e calças, construía casas no cimo das árvores. Algumas vezes, com a rapaziada do bairro, fazíamos incursões por um rio próximo, onde apanhávamos peixes de água doce, de todas as cores, para os nossos aquários.
De noite, corríamos pelos muros e quintais, brincávamos aos polícias e ladrões. Havia lugar para o teatro de sombras, em caixas de madeira, as festas… Era um tempo que parecia sem limites. Afinal, era apenas a liberdade da nossa infância e juventude. Com o tempo percebi, que de entre os amigos do futebol do bairro, e que apesar de todos andarmos descalços, uns eram mais livres que outros. Entendi que havia algumas diferenças marcadas pela cor da pele.
Há 30 anos, a liberdade foi sinónimo da explosão de possibilidades. A utopia igualitária conquistou o País por instantes. Foi bonito.
Mas a realidade, agora que estudamos e observamos os fenómenos sociais, e que já estamos noutro patamar de consciência e de exigência, obriga-nos a olhar com outros olhos para estes aspectos.

A liberdade que mais interessa a todos já não é apenas a liberdade política. Tomamos consciência que a nossa liberdade começa a ser afirmada ou contrariada com as melhores ou piores condições de vida dos nossos pais. Não duvidamos que a qualidade da maternidade e da infância vão ditar um papel importante sobre a nossa liberdade. O maior grau de cuidados de saúde, a educação, a alimentação equilibrada, o acesso à cultura extracurricular é ingredientes fundamentais da nossa liberdade futura.
A liberdade e as liberdades que a integram começam hoje a ser colocadas em risco a partir do momento em que temos sectores da população juvenil que estão fora dos cuidados primários de saúde, que abandonam prematuramente as escolas ou que, embora possa frequentar a escola, não acede ao mesmo padrão e nível de ensino que o poder de compra de outros permite aceder. É esta injustiça que está no âmago do nosso atraso, em que há escolas que por regra fazem ministros, gestores, investigadores, directores, no fundo criam as elites, e outras que despejam gente mal preparada, a caminho do desemprego, da frustração e da exclusão do sistema.
E mesmo que o Estado e as entidades competentes tudo fizessem para assegurar os mínimos para a formação de elites nas suas escolas, ainda assim teríamos o factor das redes sociais e familiares a contrariarem esse esforço. Mas cada português teria mais meios de defender-se, de se afirmar na sociedade e no mercado.
Esta tema vem a propósito de um encontro privado que mantive, no Domingo passado, com o líder de um dos grandes partidos dos Palops. Após ter ouvido as suas primeiras respostas às minhas questões percebi quão longe andam as necessidades dos povos africanos em termos de liberdades. Este dirigente e amigo tem de conciliar actividade política com preocupações tão primárias como garantir que a família a ou de b tenha um funeral condigno para um seu ente falecido. O pensamento dele não está totalmente virado para o exercício da política. Ele vê a sua liberdade constrangida pela necessidade de sobreviver dos seus, pela ameaça sobre a segurança pessoal de cada um. Nós por cá debatemos a qualidade do ensino, da economia, da saúde.
Enquanto aqui tentamos reforçar as causas concorrentes para uma maior liberdade, no país africano do meu amigo a liberdade é uma palavra sem conteúdo e vazia. Esvaziada pela corrupção, pela fome, pela mão forte de um poder de legitimidade duvidosa. Ali não se opta nem se podem tomar livremente opções, sejam elas políticas ou individuais.
Como são boas as minhas imperfeitas liberdades, quando comparadas com as do Sul.

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