O presente pode estar envenenado.
Há presentes que aliviam a má consciência, apaziguam as almas, e até dão jeito aos beneficiados mais directos. Fazem-me lembrar o avarento, que se farta de fazer patifarias diariamente ao seu semelhante e que, ao avistar um pedinte de mão estendida, logo mete a mão à algibeira e, pela frincha aberta da janela do carro ou à porta da Igreja, deposita cuidadosamente, com os dedos em pinça, a moedinha que lhe há-de comprar o perdão de mais um dia recheado de pecados. É uma acção calmante, um sedativo. Do outro lado, o personagem, necessitado ou não, agradece e entra no jogo. Todos sabemos que o lugar de um mendigo à porta de uma igreja, de uma conhecida ourivesaria ou de uma pastelaria bem frequentada tem um preço de mercado e é um couto de caça privado. Os seus proprietários são mestres na arte de tirar partido das más consciências dos que por ali passam.
Os países ricos perdoaram as dívidas aos chamados países pobres. Um gesto bonito. É uma reivindicação antiga, legítima, até diria necessária e devida. A legitimidade advém até da natureza e das causas das mesmas. A necessidade resulta da tomada de consciência da impossibilidade prática de solver as mesmas, do sentido prático do sistema capitalista e da urgência em aliviar as culpas no cartório. As causas podem remeter para a herança cultural, política, económica e social transmitidas aos devedores.
Recordo-me que há alguns anos entrava em Portugal uma conhecida cadeia multinacional de lojas de venda de brinquedos. Os estudos diziam que as casas portuguesas estavam atoladas de brinquedos e que havia saturação e falta de espaço para que os pais pudessem comprar mais brinquedos aos seus filhos. Dei por mim, juntamente com um especialista em distribuição, a procurar a solução conjuntural. E ela veio: simples, altruísta, misericordiosa, bondosa. Estava na altura de lançar uma campanha nacional de recolha e oferta de brinquedos usados às crianças mais necessitadas. O problema da falta de espaço para mais brinquedos novos estava resolvido. O negócio podia continuar.
Este perdão por si só não chega. Há que fazer algo mais. Exigências concretas de boa governação dos Estados. Criação de uma consciência universal, de uma carta com dez simples mandamentos que estanquem a hemorrogia de vidas, da riqueza e matérias primas dos países ditos pobres. Chegamos ao problema e alicerce fundamental da resolução das causas dos problemas de qualquer país. As liberdades devem ser um valor a defender pela comunidade internacional. A liberdade materializa-se desde que os cidadãos nascem até que morrem. São os direitos à saúde, a uma infância saudável, o direito à educação, o direito ao trabalho, os direitos políticos, a livre opinião, a igualdade de oportunidades. É o combate ao racismo, ao tribalismo. É o combate à corrupção e depauperação das receitas da venda de matérias-primas. São os direitos de respeito das condições aceitáveis e mínimas de prestação do trabalho. Ou seria a condenação de actividades poluidoras do planeta, a proibição da venda de produtos produzidos em condições sub-humanas. Já não falo na limitação a montante do comércio de armas e artefactos militares para fins que não sejam de salvaguarda da ordem pública ou de defesa das fronteiras. Aliás, em simultâneo, ficámos a saber que o Reino Unido é um dos maiores vendedores de artefactos de guerra para esses países…
Hoje já todos percebemos que os males dos nossos vizinhos mais pobres, as doenças, a fome, a corrupção, a instabilidade afecta a todos. O Mundo encurtou, as influências negativas sentem-se mais rapidamente e ninguém está imune à contaminação. Problemas locais são cada vez mais doenças globais.
Chegou o tempo de passarmos à fase do pensamento lateral e de começar a procurar soluções mais ambiciosas e mais sustentáveis para a espécie humana e para a boa convivência entre os povos. E já agora, que o perdão se converta em mais liberdades, mais saúde, mais educação, mais oportunidades para os cidadãos daqueles países. O que está muito longe de suceder.
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