Os patos e a preocupante dupla personalidade
Andamos com comportamentos esquisitos e contraditórios. Achamos normal, banal, passamos para segundo plano a fome sofrida por milhões de pessoas lá fora, noutros países. Entrou na normalidade, já não nos tira o sono o facto de morrerem milhares e milhares de pessoas em guerras regionais, em actos terroristas, em conflitos da mais diversa ordem. É lá longe, bem longe das nossas fronteiras. É uma indiferença, um grau de insensibilidade que nos afecta a todos, cidadãos-telespectadores, cidadãos tecnologicamente do mundo. A guerra, a fome, a doença, as ditaduras, as violações do direito internacional entram nas nossas casas, convivem bem com as nossas consciências e espíritos, já não nos desinquietam, antes nos entorpecem. É a globalização que nos trás o mundo em cada instante, que nos leva a ele a cada momento, mas que nos deixa ficar impávidos e serenos nos nossos sofás, no nosso quotidiano. Estamos erradamente certos de que dali não vem nada de mal ao nosso mundo. Vivemos no estádio da indiferença.
Por outro lado, andamos inquietos com a insegurança no trabalho, ameaça de desemprego que toca a amigos e familiares, com a incerteza das reformas no futuro. Temos horror, sentimos medo perante a reviravolta que o nosso País levou. Já não há empregos para a vida. Os cursos e o canudo já não garantem ocupação condigna. A insegurança, a toxicodependência, o medo da exclusão social já não nos deixam dormir descansados. Em nossa casa estamos inseguros. Há medos para todos os gostos: de ser rejeitado, de engordar, de não saber educar os filhos, de não ser sexy, como o diz José Gil em, “Portugal, Hoje. O Medo de Existir”, Relógio d’Água. Vivemos no estádio do medo.
É um paradoxo dos tempos, do tele-mundo, do info-mundo. Talvez apenas uma realidade de todos os tempos do homem, agora mais exposta
Como é possível aceitar, com indiferença, esta dicotomia de personalidade, de sensibilidade selectiva perante situações igualmente reprováveis e causadoras da degradação do ser humano? Porque o mundo que nos chega pelo ecrã, embora carregado de desgraça e sofrimento é também divertimento. Marcamos a presença e a ausência em simultâneo, o que nos permite, irresponsavelmente, abstrairmo-nos do real que ocorre na outra parte do Globo, na casa dos vizinhos, esquecendo que voamos apenas em lugares diferentes da mesma nave.
Há que ponderar este comportamento e criar mecanismos de cidadania mundial que nos permitam encarar os nossos semelhantes como portadores dos mesmos direitos pelos quais nos batemos internamente e cuja ameaça nos faz ter medo, quando nos toca.
Não me parece que a Globalização seja a causa desta indiferença perante o sofrimento de terceiros. A causa está em nós, seres cada vez mais virados para o eu. Como implementar à escala planetária, em cada cidadão, os valores que dignificam a pessoa e a vida humana. Sem eles seremos cada vez menos livres.
Ou será que só pensaremos neste fenómeno quando nos entrar um pato constipado, vindo da Ásia ou de África, pela janela adentro da nossa casa, a pedir um lenço para assoar-se. Esse pato, anda no ar, aproveita os ventos favoráveis, pode aparecer de diversas maneiras, sobre a forma de imigração ilegal, de tensões entre raças, de doenças transportadas por diversas fontes, de deslocalização de empresas para locais onde os direitos sociais e laborais são esquecidos. Há múltiplas formas que podem provocar um Tsunami como retorno da nossa indiferença enquanto seres que habitam nos países ditos mais desenvolvidos.
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