sexta-feira, fevereiro 17, 2006

“A areia invadiu Portugal, a cabeça e o coração das pessoas.”




As nossas conversas começaram com uma entrevista que ele concedeu ao UNIVERSUS - Jornal das Universidades, de que era director. Após a publicação da entrevista recebo um cartão do Professor, datado de 27.3. de 1988. Dizia, _ Meu caro amigo, …queria ser assinante. Posso? A carta trazia um cheque do Lloyds Bank, de George Agostinho Baptista da Silva, no valor de mil escudos. Agostinho da Silva provocava, dizendo não possuir bilhete de identidade nem passar cheques.
Daí para a frente sucederam-se os encontros, as conversas em sua casa, os amigos que ele me mandava, as cartas e os bilhetes, dactilografadas ou manuscritos numa escrita difícil. Conversas que misturavam pessoas de várias nações, especialidades, profissões e também gatos, que passeavam por cima da secretária do professor ou passavam atrás das nossas cabeças, no sofá.
Recordo-me, de certo dia ter ido aconselhar-me com Agostinho da Silva sobre a minha participação, como moderador, num debate na Faculdade de Direito de Lisboa, cujo tema era a Queda do Muro de Berlim e o desmoronar dos regimes comunistas.
_ Sabe, amigo Tocha, o problema foi quando a Raiza Gorbatchov regressou de uma viagem ao Ocidente e não tinha sabão cheiroso para tomar o seu duche. Aí começou a pressionar o marido… O resto foi acontecendo.
Noutra ocasião, regozijava-se pelo facto de Salazar o ter impedido de continuar a ensinar na Universidade Portuguesa. Fecharam-me uma porta e abriram-me a possibilidade de poder ir para o Brasil e por esse Mundo conhecer novas pessoas e criar.
Várias vezes, durante as nossas conversas, em sua casa, tocava o telefone e, perante a pausa que eu fazia na conversa, ele prontamente me dizia _ continue, pois você veio cá, está primeiro, quem telefona pode esperar.
Era um homem que aproveitava as contrariedades e fatalidades para partir para outra, rapidamente. Se ficava imobilizado por ter partido uma perna logo se ocupava a aprender mais uma língua estrangeira. Era a arte da bolina, que pega nos ventos contra e
os faz empurrar-nos para a frente.
Certo dia, entrevistei-o, e na transcrição troquei o nome de uma figura histórica. Ele, amavelmente, me agradeceu a entrevista e dizendo que tudo estava bem, apenas me advertiu para o facto de achar que, o IV é que ficou triste de ser João e não Afonso - o filho de D. Dinis. Isto a propósito de uma afirmação em que ele dizia que o D. Afonso IV uma das coisas que fez foi cortar árvores do Pinhal de Leiria para fazer navios. Que o Pinhal de Leiria foi plantado por D. Dinis para a areia não invadir Portugal. A areia, porque foi derrubada a mata, invadiu Portugal, a cabeça e o coração das pessoas. Do que se trata é de replantar o Pinhal de Leiria, preservar Portugal de tal maneira que as pessoas se vejam livres da areia e possam restaurar, reinstaurar a cultura portuguesa.

Olhava para ele e sentia-me na presença de um Mestre, sereno, que nos ajudava a encontrar uma razão para vivermos fazendo o bem a nós próprios e ao próximo.
Estou eternamente grato pelo dia em que chegou aquele pedido para começarmos a nossa amizade. Guardo o cheque, as cartas e os cartões individuais e colectivos que ele trocava comigo e com mais um punhado de pessoas.
E assim Agostinho desviou-me da análise sobre a actual crise das caricaturas. E talvez não. Ao invocá-lo, encontro uma explicação: o medo, a ignorância e a submissão são as causas do que está a suceder. Há muita areia nas cabeças de todos nós, cá e lá, que nos tolhe a visão e o alcance, fazendo-nos inseguros e agressivos. Combatam aquelas causas e tudo será melhor.
Há pessoas assim. Que nos marcam para sempre.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home