terça-feira, dezembro 25, 2007

Desilusão, de Mia Couto, in idades, cidades, divindades

Desiludido com o mundo,
Afrânio concluiu: " uns são filhos da puta,
outros só não o são
porque a mãe é estéril"

Decidido ao suicídio,
no alto da falésia hesitou:
" no mar não me lanço
que é demasiada sepultura.
Como receberei flores
entre tanto peixe faminto?"

Ante a fogueira, Afrânio desfez as contas:
" Na labareda, não.
Como distinguiria,
depois, entre a cinza da lenha ardida?"

Quando na allta copa se pensou pendurar,
uma vez mais ele se avaliou.
E recordou o vizinho Salomão
que, de enforcado, se converteu em fruto,
seiva correndo na veia,
polpa viva a seduzir a passarada.

Afrânio regressou a casa,
resfregou as solas sobre os tapetes,
a esposa festejou o novo alento.

Engano seu, mulher, respondeu Afrânio.
Eu apenas escolhi outro suicídio.
A minha morte é este viver.

Maputo, 2006 Mia Couto

1 Comments:

Blogger Dois Rios said...

Olá João,

O Google me trouxe aqui através da poesia do Mia Couto que eu tanto gosto.

A nossa vida é isso. Um reavaliar constante diante da vontade que as vezes dá de pendurar-se na alta da copa. Mas a morte não é viver. A morte, na realiade, é não saber viver.

Beijos,
Ayan

4:33 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home